Revista Vertigem

O que não te disseram sobre o que você já ouviu

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Transição energética ou expansão da exploração de petróleo?

A contradição entre o papel de liderança mundial na transição energética que o Brasil galga com a COP 30 e a constante pressão política para aprovação da exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas -licença que os técnicos do IBAMA recomendaram negar, mas  continua em andamento.

Luara Gagliardi

21/04/2025 às 12:30h

No momento em que esta matéria foi escrita, Belém estava em obras, que continuarão por todo o ano de 2025. Um ambicioso projeto de implementação de estrutura, funcional e turística, visa preparar a cidade para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30), evento de suma importância mundial que consolidaria o papel de liderança do Brasil no cenário de uma transição energética eficiente.

As obras são uma parte crucial da realização do evento pois trata-se de  um momento em que os olhos do mundo estarão voltados para Belém, e para a estrutura e tecnologia do país que vem se colocando à vanguarda da transição energética mundial.

Muito se fala sobre o potencial de uso de fontes de energia renováveis no país e o próprio presidente Lula afirma, com frequência, que o Brasil será um dos “carros chefe” do processo mundial de transição para fontes de energia mais sustentáveis.

A política energética do Brasil no período que antecede a Conferência, entretanto, não apenas contradiz a imagem de migração para tecnologias sustentáveis que o país vem tentando transmitir, como tem aberto portas para uma exploração ambiental ainda mais violenta. 

Nos últimos anos, o país vem vivendo o drama da queda de braço entre Petrobras e IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) pela permissão para exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas. 

O processo estende-se há mais de uma década, mas foi no ano passado que autoridades iniciaram a pressão sobre o órgão regulamentador para conceder a licença, mesmo que os pareceres técnicos tenham recomendado que a extração não fosse aprovada pelo grau alarmante de riscos ambientais empreendidos pela atividade petroleira. 

É nesse cenário, em que o discurso dúbio tenta vender uma imagem ecológica do Brasil a nível internacional e, ao mesmo tempo, pressiona o aumento da exploração de fósseis em região sensível a nível nacional, que o equilíbrio de um dos ecossistemas mais ricos do país e do mundo é ameaçado, não por falta de competência dos órgãos de regulamentação ambiental, mas por pressão política.

Por que é tão sensível explorar petróleo na foz do Rio Amazonas?

O rio Amazonas é o rio mais extenso do mundo e possui, também, o maior volume de água. Um quinto de toda a água doce que deságua no mar vem deste rio. Na região do deságue, o volume de água que desemboca no oceano é tão grande que cria uma pluma de água doce e sedimentos que se alonga por quilômetros mar adentro, favorecendo o ambiente para espécies animais e vegetais específicas, muitas das quais que existem somente na região do deságue do Amazonas

Outros grandes representantes da biodiversidade única da região são os Corais da Amazônia, recifes de corais que estima-se que se alongam por em torno de 56 mil quilômetros quadrados na região de deságue, adaptados a uma mistura de água doce e salgada de forma não vista anteriormente. Essas formações de corais foram descobertas apenas em 2016 e muito sobre sua fauna e flora ainda está por descobrir.

Além da preciosidade da vida encontrada na própria bacia do rio, há que se lembrar de toda a importância da Floresta Amazônica; sua biodiversidade única, sua importância para o equilíbrio ambiental global e sua importância para diversas comunidades, urbanas e tradicionais, que dependem da integridade dos ecossistemas da região para sobreviver. O rio Amazonas é o coração de todo esse sistema biodiverso, e fundamental para sua adequada manutenção. 

Por que há interesse em explorar a região?

O potencial petrolífero da região chamada de “margem equatorial” já era cobiçado há algum tempo, mas a descoberta de petróleo na região pela Guiana, em 2015, criou excitação do mercado petroleiro da região para  as reservas equatoriais. 

Na Guiana, o potencial de produção da região foi descoberto e é explorado por uma multinacional americana, a ExxonMobil. Em 2016, o Acordo do Petróleo feito pelo país forneceu condições favoráveis para empresas estrangeiras que quisessem explorar petróleo na região. As concessões criam um ambiente financeiro que favorece o lucro das companhias e diminui a participação estatal através da repartição de dividendos – a margem de participação nos lucros das companhias é de aproximadamente 85%, enquanto o governo recebe apenas aproximadamente 15% –  e da possibilidade de abatimento de impostos, gerando não apenas uma problemática transferência de recursos públicos para a iniciativa privada como o cenário neoliberal de absorção de impactos: o Estado absorve o risco ambiental da exploração de petróleo, mas não recebe participação financeira suficiente para compensar os danos.

Desde então, a influência de petroleiras estrangeiras na região só aumentou. No começo do ano, a ExxonMobil anunciou o aumento das extrações, chegando ao valor de quase um milhão de barris por dia; em 2024, a Guiana liderou o ranking de crescimento econômico mundial, com um crescimento de 43% no PIB.

O alto desempenho econômico da atividade petroleira na margem equatorial da Guiana voltou os olhos das petroleiras para a região. Para o investimento em exploração de petróleo na margem equatorial brasileira, a Petrobras prevê, que até 2029, dos 51 poços que serão abertos pela empresa, 15 estarão na margem equatorial, com um investimento bilionário na ampliação da infraestrutura exploratória regional.

Nos últimos anos, a corrida pela exploração de petróleo na margem equatorial se intensificou no Brasil, impulsionada pelo apoio de vários políticos, a maioria deles proveniente de estados que seriam atingidos pelo desenvolvimento socioeconômico que alegam que a atividade petroleira levaria à região.

Em 2025, foi apresentada proposta para instituição da Frente Parlamentar em Defesa da Exploração de Petróleo na Margem Equatorial do Brasil, que visa regulamentar e “garantir a operação” da atividade no país. Entre os membros do Legislativo envolvidos na defesa dos interesses de exploração, destaca-se o presidente do Senado Davi Alcolumbre. 

O processo, no momento, está em fase de conceder a permissão para investigar o potencial petrolífero da região -não, necessariamente, de concessão da licença definitiva para o exercício da atividade na área- e a licença em fase de estudo pelo IBAMA, por seu efêmero estado de não permanente, tem o apoio mesmo de membros do executivo que garantem ser importante “ter conhecimento do potencial petrolífero da região”, mesmo que a exploração não seja aprovada posteriormente. Esse argumento, entretanto, ignora que a concessão de uma licença prévia seria meio caminho em direção à concessão permanente, que apesar de ainda ser alvo de estudos de viabilidade, teve a recomendação técnica de ser negada. 

O presidente Lula e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, são os principais membros do Executivo que defendem a atividade de exploração na região. Por ironia, o ministro, bem como Lula, dão espaço ao discurso da transição energética como um de seus focos de ação; em Abril de 2025, paralelamente a suas defesas da exploração de petróleo na margem equatorial, o ministro publicou um conjunto de medidas de descarbonização que já estariam em vigor no Brasil chamado “Brasil, líder mundial da transição energética”. Silveira também afirmou que a transição energética não deveria ser limitada a recursos tecnológicos, mas deveria ser um novo modelo de desenvolvimento que foque na inclusão social. 

Sobre a contradição evidente entre estas duas posturas, o presidente Lula já afirmou que a transição energética, apesar de importante, não será realizada repentinamente e, por tratar-se de um processo longo, é necessário continuar a exploração de petróleo no Brasil, mesmo para usar o dinheiro proveniente da atividade petroleira para custear a transição energética.

Para Luiz Fernando Schettino, Doutor em Ciência Florestal, este argumento não faz sentido. Ele diz que definitivamente a transição precisará ser gradual, uma vez que não é viável “fechar todos os poços de extração de petróleo no Brasil do dia para a noite”. Mesmo assim, Schettino afirma que o caminho não é a continuação da atividade petroleira em ritmo de normalidade. “Precisamos de uma política de não abertura de mais poços de petróleo, como outros países já fizeram. Principalmente com a marca de 1,5ºC [acima do período pré-industrial]  atingida em 2024, a transição energética precisa ser prioridade. Não temos mais tempo.” 

Para especialistas como Luiz Fernando, o projeto de exploração contém muitas problemáticas ambientais que não podem ser mitigadas, uma vez que boa parte da biodiversidade da região ainda não foi descoberta e os impactos são ainda desconhecidos, muito grandes ou muito graves.

O problema do apoio massivo de membros do corpo político brasileiro ao projeto de exploração na foz do Rio Amazonas é que o processo principal sobre o assunto que tramita no IBAMA não apresentou, para o parecer técnico, substância suficiente para garantir a segurança da exploração de petróleo na região, e a pressão política tem o potencial de afetar o julgamento do órgão, que deve ser técnico.

A tramitação do processo

O processo que pede o licenciamento da exploração de petróleo no bloco FZA-M-59 foi aberto em 2014, pela empresa britânica BP Energy do Brasil LTDA. O IBAMA deu andamento ao processo, pedindo por documentos e ações necessárias ao licenciamento. A BP chegou a construir um Centro de Tratamento aos Animais Silvestres, que ficou pronto mais ou menos no mesmo período em que a Petrobras adquiriu os direitos de exploração do bloco, assumindo o processo junto ao IBAMA.

O órgão havia considerado os documentos e medidas apresentados até então insuficientes para a concessão da licença. Oito meses após assumir o processo, a Petrobras solicitou que o processo de licenciamento fosse dividido em duas partes. A primeira parte consistia no fornecimento de uma Licença Provisória, que permitiria a investigação da existência e das características das reservas de petróleo na região. Esta parte do processo deveria ser concluída utilizando os documentos já apresentados e declarados insuficientes pelo IBAMA. 

A segunda parte do processo de licenciamento terminaria com o fornecimento de uma Licença Permanente, essa sim que permitiria à empresa a atividade de exploração de petróleo propriamente dita. O IBAMA aceitou a divisão do processo mas, até o momento desta publicação, ainda não havia fornecido a Licença Provisória, para a qual vem exigindo os documentos e medidas necessários.

A Petrobras, com o objetivo de conseguir o licenciamento, fez um amplo investimento em estruturas de contenção de danos e de mitigação de impactos. Alguns dos mais citados no processo são o Projeto de Monitoramento de Desova de Tartarugas Marinhas, o Projeto de Monitoramento de Fluidos de Perfuração e Cascalhos e o Censo Espaço Temporal de Aves de Ecossistemas Costeiros e Migratórias. Toda a construção de estrutura na região foi feita com base na linha de raciocínio de que, cumpridas medidas de gerenciamento de possíveis impactos, a licença teria de ser aprovada. Mesmo com os investimentos em contenção, entretanto, o empreendimento ainda apresenta pouca viabilidade ambiental para os técnicos do IBAMA, que recomendaram, mais de uma vez, a não concessão da licença e arquivamento do processo, mas foram ignorados pela gestão do órgão.

O especialista Luiz Fernando Schettino explica que, quando se trata de licenciamento ambiental, trabalha-se com duas formas de contenção de danos: a prevenção e a precaução. A prevenção aplica-se quando há riscos que podem ser mitigados ou contidos. Assim, toma-se medidas para a viabilidade desses casos através de ações ambientais. 

Por sua vez, quando não há a possibilidade de mitigar esses impactos, ainda não se sabe ao certo o que poderia acontecer ou o risco se apresenta como de extrema gravidade, aplica-se a precaução, que consiste em não autorizar a atividade econômica sob tal risco.

É importante citar que a Petrobras já fez uma tentativa de explorar petróleo na Foz do Amazonas; em 2011, a empresa recebeu permissão do IBAMA para explorar um bloco próximo ao que está, agora, em debate. Na ocasião, a Petrobras moveu seus contingentes para a perfuração do poço, mas a sonda foi levada pelas águas revoltas da foz do rio, e a empresa desistiu de realizar a exploração na região.

A ministra Marina Silva vem afirmando que a decisão do IBAMA no caso da exploração de petróleo na margem equatorial será técnica. Apesar da recusa em seguir as recomendações dos pareceres técnicos, espera-se que o órgão não ceda à pressão violenta que parte de membros do corpo político pela aceitação da exploração de petróleo na região. O aspecto de preservação ambiental e da biodiversidade de uma região tão importante como a foz do rio Amazonas não pode estar sujeito aos interesses econômicos de uma ínfima parcela da população ou do mercado financeiro.

Ao observar o posicionamento de alguns dos defensores da atividade petroleira na região, percebe-se os dois discursos paralelos -posicionar o Brasil em papel de destaque na transição energética mundial e iniciar novos poços de petróleo  numa das regiões mais sensíveis do território do país- que não parecem encontrar contradição, e as duas lógicas coexistem não apenas no mesmo governo, mas mesmo nas mesmas figuras políticas.

O processo que desenha-se entre a atividade petroleira e a regulamentação ambiental é, sim, contraditório, vez que não se trata de interesses meramente diferentes, mas diametralmente opostos. O modelo de comunicação adotado pelas entidades de participação no debate envolve uma conciliação de interesses impossíveis de serem conciliados.

Aqui, fica a questão: até que ponto é possível defender a transição energética e a expansão da indústria do petróleo sobre ecossistemas de importância colossal? Até que ponto é possível agradar petroleiros e ambientalistas? A marca de 1,5ºC acima do nível pré-industrial foi atingida em 2024 -meia década mais cedo que as previsões pessimistas feitas por cientistas à época do Acordo de Paris- e muito tem se falado sobre a eleição de Donald Trump, que tirou novamente os Estados Unidos do Acordo.

Mesmo entre membros do Acordo de Paris, entretanto, continuam havendo medidas que fazem questionar a importância da transição energética em suas agendas. É fundamental que o Brasil adote uma postura de real comprometimento com a transição para energia renovável o quanto antes; cada semana, cada mês que o processo de abandono de combustíveis fósseis for adiantado, significa menos poluição, menos emissão de carbono, menos graus subindo e, consequentemente, mais chances de não apenas sobrevivermos, mas sobrevivermos garantindo a mínima dignidade para a espécie humana. Para isto é, entretanto, necessário definir prioridades. Não é possível seguir conciliando espada e pescoço, jogando o jogo da proteção do meio ambiente e do sistema que o destrói. 

Se vamos enfrentar o desafio à humanidade que é imposto pelas mudanças climáticas, é preciso coerência e concentração de esforços e, definitivamente, é preciso que pare de ser evitado o comprometimento sério com a questão e que tenhamos o posicionamento público do Brasil, em definitivo e sem margem para interpretação, do único lado da questão que viabiliza a continuidade da vida humana.