A comunidade de Vila Esperança, com mais de nove anos e 3,6 mil moradores, enfrenta o risco de reintegração de posse determinada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), prevista para ocorrer na próxima sexta-feira (28).
Vila Esperança começou em novembro de 2016, surgindo a partir da necessidade de moradia digna e também devido à impossibilidade de pagar o alto valor do aluguel. Em janeiro de 2017, a comunidade recebeu o primeiro lote fiduciário, limpou o terreno até então abandonado e construiu suas casas. Houve diversas tentativas de desocupação que não foram adiante em decorrência da pandemia de Covid-19 e, em 2020, o então prefeito Max Filho elaborou um decreto (DECRETO Nº 209, DE 14 DE AGOSTO DE 2020) destinando a área onde está localizada Vila Esperança para a moradia social. Esta foi dividida em glebas (porção de terra, geralmente de grande extensão que ainda não foi dividida em lotes), e duas delas foram destinadas à comunidade.
Em 2022, o decreto elaborado por Max Filho foi revogado (DECRETO Nº 71, DE 10 DE MARÇO DE 2022) pelo atual prefeito de Vila Velha, Arnaldinho Borgo (reeleito em 2024) sem motivo descrito no documento. Vila Esperança, que já era habitada desde 2016, passou a ser uma área de interesse industrial e imobiliário nos termos da prefeitura. No mesmo ano, houve uma tentativa de desocupação forçada, sem ordem judicial, com ameaça aos moradores, homens armados e maquinário pesado atuando na derrubada de casas. As famílias de Vila Esperança resistiram e seguem lutando por seu lar.
Os moradores construíram suas casas, planejaram as ruas, criaram vínculos comunitários e, apesar da consolidação em 2022 e de estarem morando na área desde 2016, há um esforço da prefeitura para que a região não seja reconhecida como bairro oficial. Tal impedimento, dificulta o acesso dos moradores a serviços básicos como: saneamento, tratamento de esgoto, iluminação, transporte público, escolaridade, serviços de saúde e muitos outros desafios. Essa falta de apoio tem levado a comunidade a buscar soluções alternativas para suprir as carências básicas, com a autossuficiência e a parceria com projetos sociais se tornando uma forma de garantir o mínimo de dignidade para os moradores.
Ione Duarte é educadora popular, engenheira bioconstrutora e articuladora social, vive em Vila Esperança há quase cinco anos e luta pela melhoria das condições de vida no local.
“Urbanização é uma coisa que o prefeito nunca olhou; a gente não tem saneamento básico, não temos acesso a água e luz. Muitas barreiras foram criadas para que isso não chegasse aqui no território, não temos o mínimo. A comunidade se autogere nesse sentido, de pensar as ruas. Temos apoio de algumas ONGs, de algumas entidades que nos dão esse apoio para que a gente estruture o bairro e construa ele junto das pessoas que vivem aqui, seguindo todas as leis de tamanho e largura. Aqui, na minha casa, conseguimos tratar o esgoto porque temos o sistema ecológico de tratamento, algumas outras famílias também têm esse sistema. Nós fomos entendendo que o atual governo de Vila Velha não tem interesse em urbanizar isso aqui, então fomos criando soluções para que o ambiente seja minimamente e solidariamente possível de viver”, afirma Ione.
A luta por direitos urbanos
Há mais de três anos, a comunidade recebe o acompanhamento do Grupo Esteticidades, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenado pela professora Lara Brum.
“Nosso interesse é discutir o direito à cidade, a distribuição desigual dos espaços urbanos e as barreiras psicossociais enfrentadas por populações vulnerabilizadas. Acompanhamos ocupações na Grande Vitória, incluindo Vila Esperança, fortalecendo suas lutas por moradia, acesso a direitos e políticas públicas. Nosso trabalho é uma aposta na força comunitária, naquilo que está sendo produzido pela própria comunidade, fortalecendo os vínculos comunitários, mediando as relações de acesso a políticas públicas e produzindo cuidado e espaço para questões de saúde mental”, explica Vitória Mancini, psicóloga e membro do Grupo Esteticidades.
O grupo também realiza pesquisas sobre o pertencimento ao território e as relações de vizinhança. “Realizamos trabalhos de pesquisa que buscavam investigar as relações da comunidade com o território, as relações de pertencimento com aquela terra, a importância das pessoas se assentarem naquele território, produzirem ali, plantarem sua própria comida. Pesquisando as questões de acesso ou não a políticas públicas, com atividades de extensão na horta comunitária e com as crianças”, concluiu Vitória.
Em parceria com o coletivo de arquitetura Onze 8, o Grupo Esteticidades ajuda a elaborar um Plano Popular de Bairro, um projeto construído pela própria comunidade a respeito do bairro que pretendem ser: como querem a distribuição do espaço, qual lugar mais adequado para um posto de saúde, para uma creche e uma idealização de como gostariam que Vila Esperança fosse projetada para atender às demandas da comunidade. Vitória também afirma que esse trabalho é feito de forma braçal, com mutirões de emplacamento de lotes e também por meio de um levantamento psicossocial, coletando dados valiosos que entram no processo de permanência da comunidade, visto que os dados do governo do município de Vila Velha estão desatualizados e não representam Vila Esperança.
Esses levantamentos servem para falar quantas pessoas residem na localidade, como essas pessoas se identificam no âmbito étnico-racial, qual a renda, o gênero, se acessam água e energia, se elas conseguem manter uma alimentação segura e eficiente. São diagnósticos muito valiosos, mas não há interesse algum por parte de grandes empresários em conhecer esses dados antes de pedir a reintegração de posse e expulsar mais de 800 famílias de suas moradias. O que deveria ser prioridade é a criação de políticas públicas pelo governo de Vila Velha para garantir direitos humanos básicos, conforme prevê o Artigo 6º do Capítulo II (Dos Direitos Sociais), do Título II da Constituição Federal, que assegura a moradia digna como direito fundamental, assim como o acesso à alimentação e condições mínimas de sobrevivência.
Especulação Imobiliária
Há um grande interesse dos empresários na área, que visam transformar o local em um polo industrial e imobiliário. A comunidade se vê ameaçada, não apenas pela reintegração de posse, mas também pela luta constante para garantir a permanência no terreno que moram e desenvolveram ao longo de anos. O atual prefeito de Vila Velha, Arnaldinho Borgo, também responsável pela revogação do decreto que assegurava a moradia de mais de 800 famílias, deixa clara a tentativa de agradar empresários da área imobiliária, que também disputam territórios na região.
Próximo à Vila Esperança estão localizados os residenciais Vista Linda I e II, contratados no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, que também foram desocupados. Cerca de 400 moradores foram despejados em 2023. Atualmente, os residenciais estão abandonados, já que nada interessa à gestão municipal de Vila Velha e ao Governo do Estado do Espírito Santo assegurar moradia digna àqueles que mais precisam.
Carlos Fernando Machado, citado no processo de reintegração de posse como suposto dono da área onde se localiza Vila Esperança (citada no processo como “Fazendinha 13”), foi processado pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo repetidas vezes por suposto envolvimento com grilagem de terras. Nossa equipe de reportagem entrou em contato com Arnaldinho Borgo e também com Carlos Fernando Machado, na tentativa de obter declarações ou justificativas de ambos em relação à Vila Esperança. Até a publicação desta reportagem, não obtivemos nenhum retorno dos mesmos.
A prefeitura de Vila Velha declarou Vila Esperança como uma área de alagamento e de proteção ambiental, e os moradores se questionam se a área também seria classificada da mesma forma se fosse destinada à construção imobiliária. A prática, sobretudo, serve para desumanizar e marginalizar os moradores da comunidade, numa tentativa de deixá-los malvistos nas regiões externas e sufocar suas reivindicações.
Adriana Paranhos, mais conhecida como “Baiana”, é integrante da coordenação capixaba do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e uma das representantes da comunidade. Ela se preocupa com o futuro das crianças de Vila Esperança, que, graças ao descaso do poder público, não têm seus direitos básicos assegurados. Muitas sofrem com o difícil acesso às escolas, que estão localizadas em bairros vizinhos, devido a questões como essa que a própria comunidade desenvolveu um sistema de reforço escolar e de ensino em uma escola improvisada.
“Aqui temos quase 600 crianças, e em tempos quentes elas não vão à escola porque não têm água para tomar banho nem para se alimentar. Essas crianças também faltam à escola em tempos de chuva, devido ao percurso, e apesar de todas essas dificuldades, continuamos batendo na mesma tecla sobre o direito à moradia e o direito de viver com dignidade, que não estão sendo garantidos. Não temos água, não temos acesso à energia. Tudo o que temos aqui hoje é improvisado, foi feito pelas nossas próprias mãos. Então, sim, queremos a atuação do poder público para resolver essa situação. Isso foi cobrado várias vezes”, conclui Baiana.
Caroline é mãe solo, moradora de Vila Esperança há cinco anos, e relata a importância do espaço em que vive: “Eu gosto muito daqui, até porque não tem como ter dinheiro para pagar um aluguel. Aqui, tenho meus três filhos, que crio sozinha. Infelizmente, lá fora está muito difícil, pagando aluguel, água e luz. Eu queria muito que os governantes, incluindo o prefeito, tivessem sensibilidade com a comunidade, porque precisamos muito ficar aqui. Então, peço sensibilidade, porque precisamos do nosso lar. Aqui, construímos e plantamos, e se tivermos que pagar um aluguel, como vamos sobreviver com o pouco que se ganha hoje em dia? Não tem como.”
Enquanto o relógio avança para a data marcada da reintegração de posse, as centenas de famílias residentes em Vila Esperança seguem resistindo aos impactos da crise habitacional que assola o Brasil. Esse é um exemplo iminente do desejo de invisibilizar uma comunidade majoritariamente preta e promover a marginalização de mais de 600 crianças e também PCDs, que fazem da comunidade seu lar. A revogação do decreto que garantia moradia social, a falta de transparência nas ações do prefeito Arnaldinho Borgo e os supostos indícios de grilagem por parte do “dono” da terra expõem uma teia de desigualdade estrutural, onde o direito à cidadania é privilégio para poucos.
Mais de 3,6 mil pessoas estão prestes a perder suas casas por causa da ação de poderosos e da decisão do então prefeito de Vila Velha, Arnaldinho Borgo. A Vila Esperança, comunidade que existe e resiste há 9 anos, construiu suas próprias moradias, criou hortas comunitárias e resiste à falta de saneamento, luz e água tratada. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo marcou a reintegração de posse para esta sexta-feira (28/03). Assine a petição abaixo e ajude Vila Esperança.
Reportagem por Felipe Figueiredo
Fotografia por Eduarda Fernandes
Revisão por Eduarda Fernandes e Guilherme Kaiser
Diagramação por Luara Gagliardi