Revista Vertigem

O que não te disseram sobre o que você já ouviu

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Mickey 17: do cinema à vida real, quem morre para o sistema seguir funcionando?

Maria Luiza Favalessa

19/05/2025 às 19:54h

Em Mickey 17, dirigido por Bong Joon-ho e estrelado por Robert Pattinson, somos transportados a um futuro distópico onde a humanidade explora planetas distantes em busca de sobrevivência. Mickey é um “descartável”, ser humano designado para missões letais, sabendo que será morto e ressuscitado. Seu corpo é substituível. Sua consciência, reciclável. A vida, descartável.

Não é preciso viver em um planeta hostil para reconhecer esse modelo de sociedade. No início de maio, um trabalhador foi brutalmente esmagado entre as portas de um vagão de trem em São Paulo no horário de pico. O sistema não parou. O trem continuou. E a vida seguiu para todos, menos para Lourivaldo Ferreira Silva Nepomuceno.

Mickey 17 é uma metáfora dolorosamente atual. No mundo real, a descartabilidade dos corpos, especialmente os corpos pobres, racializados e periféricos, é prática consolidada de um sistema que opera com a lógica da eficiência sobre a dignidade. O trabalhador morto é somente mais um “descartável”, facilmente substituído, jamais lembrado. A engrenagem continua girando.

O filme também carrega uma crítica mordaz ao imperialismo e ao colonialismo sob nova roupagem: o expansionismo espacial. O planeta colonizado, habitado por seres nativos hostis, torna-se palco de uma campanha militar com o mesmo discurso de sempre: levar “ordem”, “civilização” e “progresso”. Não é difícil reconhecer aqui as sombras do passado — das invasões europeias a países africanos, do Iraque ao Haiti. O líder da missão em Mickey 17, uma figura autoritária, protagonizada por Mark Ruffalo, com discursos messiânicos e maneirismos caricatos, poderia facilmente ser confundido com certos presidentes e líderes militares do nosso tempo, que empilham cadáveres em nome de ideologias nacionalistas ou promessas de grandeza.

Há também uma crítica à ideia de identidade e individualidade sob o capitalismo. Com múltiplas versões de si mesmo existindo ao mesmo tempo, Mickey se vê competindo com… bem.. ele mesmo. Uma alegoria perfeita para o esgotamento do indivíduo moderno, que precisa trabalhar como vários para sobreviver como um. Os limites entre pessoa e função se diluem. A subjetividade é triturada.

Bong Joon-ho, como em Parasita, volta a explorar a desigualdade brutal como motor da narrativa. O luxo de poucos depende do sacrifício de muitos e os muitos têm nome, rosto, CPF e, como vimos na semana passada, carteira de trabalho. A ficção científica de Mickey 17 nos convida a ver o presente sob uma nova lente: o que parece ficção é, na verdade, uma crônica quase documental do nosso tempo.

A morte do trabalhador na linha de trem não é acidente. É projeto. Assim como Mickey é programado para morrer, há setores da sociedade que já nascem com o destino traçado: morrer cedo, trabalhar até o fim, sem direito à falha, à pausa, ao descanso. O filme denuncia essa lógica, mas cabe a nós reconhecê-la fora da tela  e rejeitá-la.

Porque enquanto houver corpos esmagados por trens, por metas, por fardas, ou por cifras, Mickey 17 continuará sendo um espelho, não uma distopia.