Revista Vertigem

O que não te disseram sobre o que você já ouviu

O que não te disseram sobre o que você já ouviu

Jornalista não precisa ser imparcial, pelo menos não sempre.

Eduarda Fernandes

21/04/2025 às 12:44h

A imparcialidade é um substantivo feminino que segundo o dicionário Michaelis refere-se ao “caráter ou qualidade de imparcial; equanimidade, justiça, neutralidade”. No contexto comunicativo, em especial no jornalismo, a imparcialidade surge tanto como ponto de partida para a disseminação de informações de interesse público quanto fator limitante para a interpretação dos fatos. O consenso de que a imparcialidade deve guiar toda produção de material jornalístico foi disseminado principalmente pela própria imprensa. “O parcial” ou “o que toma lados” em um veículo de notícia é considerado indigno de leitura pois representa uma visão de mundo de seu autor e consequentemente seus parâmetros opinativos sobre o tema.

Muito tempo antes de começar a graduação em jornalismo eu já sabia que a imparcialidade era um pré requisito. Ao decorrer das aulas e partindo da compreensão do que realmente significa ser imparcial, pude constatar que o jornalista não precisa ser imparcial, pelo menos não sempre. Recentemente, ao trabalhar em um projeto que monitorou ataques a jornalistas durante a cobertura das eleições municipais, ficou claro que o mito da imparcialidade foi e continua a ser alimentado pelo próprio jornalismo. Para além das doutrinações do senso comum que tratam o processo comunicativo sendo meramente informativo, foi possível notar que a própria base do jornalismo brasileiro foi construída a partir da falta de posicionamento. 

Veículos que se afirmam completamente imparciais, que aplicam termômetros para garantir isenção de viés do conteúdo publicado e aqueles que em questões humanitárias fazem questão de atribuir caráter opinativo (destacando que trata-se do posicionamento de um único indivíduo) fazem o desserviço de alimentar uma objetividade tóxica. Objetividade essa que banaliza o exercício jornalístico e transforma em boletins de ocorrência os mais graves casos de feminicídio por exemplo. 

Se por um lado temos uma sociedade com grande acesso à informação e altamente conectada, por outro temos indivíduos preguiçosos escassos de senso crítico que acreditam que o dever do jornalista é apenas detalhar minuciosamente um incidente. Esquecem-se que a própria seleção do que virá a ser notícia parte de um princípio de relevância do fato. Este atributo de relevância foi primeiramente concedido pelo próprio jornalista que dotado de ideias, conhecimentos, vieses e opiniões delimita qual parte do acontecimento é de interesse público. 

Tenhamos como exemplo o caso da jovem de 17 anos que foi encontrada morta em uma área de mata em Cajamar/SP no dia 5 de março. Se levarmos em consideração os dados do crime e escolhermos notícia-lo apenas por seus detalhes em conjunto aos processos de investigação policial, teremos o que no jornalismo chamamos de “matéria factual”. Neste sentido, a morte de uma adolescente de 17 anos que foi encontrada degolada, com o cabelo raspado e vestindo apenas um sutiã é apenas mais uma em um quadro assombroso de feminicídio no Brasil. Do que aconteceu, a abordagem apresentada por todos os jornais passou a trabalhar o interesse do homem que a violentou, obcecado pela jovem ele a monitorava nas redes sociais, guardava fotos dela e de jovens com aparência similar às da vítima. Do que se trata da realidade, e de minha opinião como mulher e jornalista, a vida de uma jovem foi ceifada e tratada como estatística em um contexto muito mais profundo de violência às mulheres, exercício abusivo do patriarcado e estrutura social que favorece e tolera a impunidade de homens que matam mulheres. 

O direito à vida sendo negado constantemente aos mesmos grupos sociais dizem muito sobre a realidade da violência no país. Além disso, a cobertura jornalística oferecida pelos principais veículos de comunicação escancara um cenário desmotivador ao exercício do jornalismo conectado aos direitos humanos. Neste sentido, pensar em um jornalismo imparcial ligado sobretudo à descrição detalhada dos fatos oferece à sociedade aquilo que já se espera e não elabora um debate quanto à raiz dos problemas frequentes de violência. 

Além disso, o contexto político marcado pela ascensão da extrema direita e violação dos direitos humanos na esfera virtual de comunicação não permite que o jornalista parta de um ponto de vista completamente imparcial. Deste modo, os usuários tendem a interpretar os posicionamentos éticos, contraditórios aos seus ideais comuns, como uma afronta ao exercício do jornalismo. “Jornalista militante” passa a ser um tipo de ataque aos profissionais de comunicação que se preocupam em uma cobertura igualitária e noticiamento de informações apartidárias. 

Espero que fique claro que o que busco defender não é a eliminação da objetividade no jornalismo tradicional nem acatar a adoção exclusiva de uma abordagem subjetiva ou literária. Muito pelo contrário, estou em busca de um ponto de equilíbrio na prática jornalística, que considere tanto a apuração detalhada dos fatos quanto a sua interpretação social, especialmente quando estes representam uma ameaça à democracia e à cidadania.