A escalada do feminicídio e a impunidade que dá voz ao agressor
No Brasil, todos os dias, mulheres são silenciadas pela violência. Algumas gritam por socorro e não são ouvidas. Outras denunciam, mas têm suas palavras desacreditadas. Há ainda aquelas que, mesmo após a morte, continuam tendo suas histórias distorcidas pela mídia e negligenciadas pelo sistema de justiça. Quantas vezes uma mulher pode ser calada até que a sociedade decida escutá-la de verdade?
Para Jacqueline Moraes, secretária de Estado das Mulheres do Espírito Santo, esse silenciamento é uma das faces mais cruéis da violência. “Existe toda uma construção cultural de vergonha, medo, falta de autossuficiência. Também há crenças limitantes, como a do casamento eterno, que fazem com que essa mulher não tome uma atitude. A falta de autonomia financeira é outro fator. Tudo isso vem de uma estrutura patriarcal e machista que a sociedade sustenta.”, afirma.
Dados do Ministério das Mulheres escancaram o cenário: entre janeiro e julho de 2024, o Ligue 180 — principal canal de denúncias de violência contra a mulher — recebeu mais de 84,3 mil registros, um aumento de 33,5% em comparação ao mesmo período do ano anterior. No Espírito Santo, o crescimento foi ainda maior: 66,58%. E mesmo com maior visibilidade, os casos de feminicídio também aumentaram. Até agosto, 38 mulheres foram assassinadas no estado por motivação de gênero, superando as 35 mortes registradas em todo o ano anterior.
Um estudo da consultoria Tewa 225 revelou que Vitória–ES é hoje a capital brasileira com mais dificuldades para enfrentar as desigualdades de gênero. A pesquisa levou em conta indicadores como taxa de feminicídio, disparidade salarial entre homens e mulheres, representatividade política e vulnerabilidade de jovens do sexo feminino.
Apesar de campanhas como “Feminicídio Zero”, do Ministério das Mulheres, o medo continua sendo um obstáculo gigantesco. Muitas mulheres hesitam em denunciar por temerem represálias ou simplesmente por não acreditarem que serão acolhidas — e, quando conseguem, nem sempre recebem proteção imediata.
“Uma mulher só denuncia se confia na rede de apoio”, reforça Jacqueline. Ela lembra que, antes da Lei Maria da Penha, muitas passavam décadas em relações abusivas sem nunca relatar. Hoje temos mecanismos, mas os Estados ainda estão se fortalecendo. Muitas não denunciam porque não sabem para onde ir, o que fazer. A sociedade e instituições como as igrejas também reforçam que ela deve aguentar mais um pouco ou que ele ‘só é agressivo porque bebe’. Trabalhamos com políticas públicas para encorajá-las a sair desse ciclo.”
Um caso simbólico, ocorrido na Serra (ES) em abril de 2025, escancarou essa realidade. Um empresário de 61 anos foi preso por perseguir, ameaçar e divulgar imagens íntimas da ex-companheira. Segundo a Polícia Civil, ele dizia que ela podia procurar a polícia à vontade, pois “nada aconteceria” e ele “não seria localizado”.
Casos como esse revelam a sensação de impunidade que alimenta a escalada da violência. Quando o agressor se sente intocável, a situação costuma piorar rapidamente. Em contextos assim, denunciar pode significar não o começo da proteção, mas o último estágio antes do feminicídio.
A impunidade, somada a um sistema que frequentemente protege o agressor, perpetua o ciclo da violência. Muitas vezes, o homem violento é descrito como “trabalhador”, “bom pai” ou “respeitável”, enquanto a vítima é questionada: por que ficou tanto tempo em silêncio? Por que não foi embora antes? “Ela provocou?”, sugerem manchetes enviesadas. A mídia, ao adotar essa postura, contribui para a culpabilização da mulher e o descrédito de sua palavra.
O caso do ex-jogador Daniel Alves exemplifica esse padrão. Condenado inicialmente a quatro anos e meio de prisão por agressão sexual contra uma jovem em uma boate de Barcelona, ele foi posteriormente absolvido pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. A corte alegou que o depoimento da vítima apresentava “lacunas e contradições”, comprometendo sua credibilidade. A decisão gerou protestos de grupos feministas, que classificaram o julgamento como “machista, patriarcal e racista”, por entenderem que reforça a cultura da impunidade e desprotege as mulheres.
O perfil das vítimas revela ainda mais sobre a gravidade do problema. No Espírito Santo, a maioria das denúncias em 2024 foi feita por mulheres negras, especialmente entre 45 e 49 anos. Mais da metade dos casos ocorreram dentro de casa — o lugar que deveria representar segurança. Na maioria das vezes, o agressor era o cônjuge ou ex-companheiro.
Já o Mapa de Mortes Violentas de Mulheres no Espírito Santo apontou que, em 2024, as principais vítimas de assassinatos estavam entre 19 e 29 anos. São mulheres jovens, muitas com filhos pequenos e planos interrompidos pela violência.
Mesmo após a morte, muitas continuam sendo silenciadas. A imprensa tradicional frequentemente trata esses crimes com uma aparente neutralidade — ou até parcialidade —, dando voz à defesa do agressor e colocando em dúvida a trajetória da vítima. É comum que o feminicídio seja retratado como “crime passional” ou “briga de casal”, ignorando o caráter estrutural da violência de gênero.
Quantas vezes mais calaremos uma mulher? Quantas precisarão morrer para que a denúncia deixe de ser apenas um número? Para que a justiça reconheça o que já se tornou regra? O crescimento das denúncias e dos feminicídios mostra que, apesar das campanhas e dos avanços legislativos, o Brasil ainda falha em proteger suas mulheres.
A resposta para o silêncio não pode ser outra morte. Ela precisa ser escuta, acolhimento, justiça — e uma mídia que ajude a amplificar, e não abafar, a voz de quem já sofreu demais.