Crença de que jamais teriam a capacidade de criar laços afetivos com uma mulher e fragilidade emocional atrai diversos jovens para a comunidade extremista conhecida como incel; figuras famosas também são cúmplices desta estatística.
Em 2021, um jovem britânico de 22 anos chamado Jake Davison atirou contra dezenas de pessoas em uma rua na cidade de Plymouth, na Inglaterra. Seis pessoas morreram no ataque, incluindo o atirador, que se suicidou no local. O caso chocante encontra reflexo inesperado na série Adolescência, nova produção da Netflix que tomou para si todos os holofotes neste início de 2025. Não é para menos. Os longos planos sequência saltam aos olhos, de fato, mas a produção assina em seu roteiro um caso e abordagem ímpar: Jamie Miller, um adolescente de 13 anos acusado de matar sua colega da escola.
Mas que relação manteria o protagonista de Adolescência, série de maior sucesso da Netflix na atualidade, e o atirador Jake Davison? Simples. Ambos frequentavam a comunidade das redes sociais conhecida como “incel”.
Os celibatários involuntários – proveniente do inglês involuntary celibates e abreviado como incel – abrange uma comunidade de homens agressivos que, creem os mesmos, não têm capacidade de conquistarem um parceiro romântico e vivem em frustração, sentimento que pode sem maiores dificuldades evoluir para ataques verbais na internet ou gerar agressões físicas. Estas são características de ambos os protagonistas nos casos citados. Duas figuras que circulavam e, muito provavelmente, interagiam com outras pessoas que também sofriam com esses tipos de pensamentos.
A comunidade incel é uma das diversas subculturas daquela conhecida como manosfera (ou machosfera), que também concentra, em sua maioria, homens frustrados por não conseguirem uma parceira romântica ou mesmo estabelecer uma conversa com uma mulher. A manosfera surgiu durante a década de 70 para 80, mas o termo que designa toda a cultura é recente, sendo conhecido anteriormente como “movimento de libertação dos homens” – proveniente da década de 70 e opositor ao feminismo. O termo atual, manosfera, surge no fim dos anos 2000. No entanto, tornou-se popular ao ser adotado por veículos jornalísticos com o objetivo de vincular esta comunidade aos homens que cometiam misoginia, agressão sexual e assédios online.
No cenário de hoje em dia, há diversas figuras famosas que pertencem à comunidade, abraçando todas as ideias difundidas nos grupos da internet e propagando uma cultura de ódio contra mulheres. Dentre estes, duas figuras se destacam: o bilionário Elon Musk, hoje o Conselheiro Sênior da Casa Branca no governo Trump, e o influenciador Andrew Tate, que foi mencionado em Adolescência.
Atual dono da plataforma X (antigo Twitter), Musk possui um histórico com grupos extremistas e conspiracionistas. E a ficha é extensa. Nascido na África do Sul, o bilionário apoia abertamente grupos conspiracionistas brancos do país, que alegam serem perseguidos pela população negra. Além disso, os avós maternos de Musk eram filiados ao partido nazista canadense, mas mudaram-se para a África do Sul por admirarem o apartheid – informação revelada pelo próprio pai a um podcast sul-africano –, o que dá um ótimo contexto ao gesto de Elon durante a posse de Donald Trump. No caso de Tate, basta uma pesquisa rápida no YouTube para entender a visão dos internautas sobre o mesmo: um vitorioso. Um conquistador que não se coloca em pé de igualdade com uma mulher, sendo o próprio influencer um misógino declarado.
Todos os contextos apresentados refletem as linhas de pensamento estabelecidas pela machosfera e todos os incels. Redes sociais como 4chan, Discord, Reddit, Telegram ou o próprio X tornaram-se um átrio para neonazistas, ou seja, um lugar para expor suas ideias e “aprender” com o outro sem que haja punição. Comportamentos agressivos, sexistas, racistas, LGBTfóbicos e de incitação ao suicídio também são inerentes aos membros dessas redes.
Em setembro de 2024, Vivian Jenna Wilson, filha de Musk que se reconhece como mulher trans e renega publicamente o pai, usou a plataforma X para condenar uma atitude sexista do bilionário com a cantora Taylor Swift, pois a mesma apoiava a candidatura de Kamala Harris nas eleições presidenciais dos EUA. “Nonsense de incel é de fato nonsense de incel”, disse Vivian na mensagem. “Não tenho muito a adicionar, é apenas repugnante. Isso é óbvio e se você não vê assim, você é parte do problema.”
Incels como Musk e Tate seguem em alta. Mesmo com o influencer britânico sendo acusado de abuso físico e mental contra quatro mulheres, sua fama e seu dinheiro são a chave para conquistar os corações dos mais jovens. De fato, nada do que dizem o bilionário e o influencer são cabíveis, mas encontram caminhos na fragilidade de quem frequenta grupos dentro da manosfera. Mesmo que não tenham se aprofundado no assunto dentro do seriado, sabemos que Jamie Miller (interpretado por Owen Cooper) sofria bullying e frequentava grupos incels junto de seus amigos da escola. Fica claro que ele esconde algo. No primeiro episódio, nos perguntamos como alguém aparentemente inocente poderia assassinar outra criança a facadas; no terceiro, cai a máscara de bom garoto. No lugar, surge uma figura aterrorizante e explosiva, proveniente de sua exposição aos grupos extremistas. Pessoas têm a tendência a classificar gente deste tipo como seres ruins ou demoníacos. Isto está correto…na primeira afirmação.
Tratar um indivíduo como um possível demônio ou puramente consumido pela maldade é semelhante a queimar e esquecer tudo o que intelectuais como Hannah Arendt escreveram. Quando ela esteve no julgamento de Eichmann, em Jerusalém, a mesma presenciou a forma displicente como o oficial tratava os crimes cometidos pelo partido. No lugar do monstro que todos esperavam ver, estava um ser medíocre e alienado. Tratar um erro irreparável da humanidade como “possessão demoníaca” e não como humanos cujas atitudes devem ser estudadas dificulta o pleno entendimento dos comportamentos humanos. Guardadas as proporções dos eventos, o mesmo não deve ocorrer com os incels. Não se trata de um esforço para inocentar criminosos, mas da plena compreensão de seus atos.
Entra em cena um dos grandes momentos da série, quando vemos o lado das famílias. Até o terceiro episódio, permanece a dúvida se o objetivo final é culpabilizar os pais pelos filhos se tornarem parte dessa comunidade. Mas assim não foi e o quarto episódio põe em evidência o objetivo principal: culpabilizar a comunidade e, consequentemente, todos os que propagam discursos de ódio nas redes sociais. Um grito de alerta para as famílias sobre a vulnerabilidade dos filhos. Pouco depois de estrear, Adolescência foi alvo de fake news por um conspiracionista da extrema-direita estadunidense, Miles Cheong. Segundo ele em sua conta no X, a série foi baseada em um caso real, mas teria trocado a etnia do protagonista de negra para branca a fim de vilanizar homens brancos. Elon Musk compartilhou a postagem, qual foi desmentida pelo co-criador da série, Jack Thorne. “Nós não queremos estabelecer uma discussão sobre raça. Estamos falando de masculinidade”, afirmou o co-criador. Nas palavras do mesmo, a série não busca olhar só para a comunidade incel, mas para uma série de fatores complexos.
Jake Davison também possui uma história. Alguns de seus conhecidos do passado viam na criança um apreço por armas e um comportamento agressivo. Sua vida familiar ajuda na compreensão dos fatos. Fragilizado e diagnosticado com autismo em 2011, Jake possuía um pai ausente e desavenças com a mãe, além de um “palavreado altamente sexual” e o sonho de ser um sniper. O atentado de 2021 vitimou sua mãe, dois homens, uma outra mulher e uma criança de 3 anos num intervalo de 6 minutos.
Tanto Jamie quanto Jake são culpados de seus crimes, mas tinham uma história. Não são maus por serem maus. Ambos trazem em seus comportamentos um fragmento dos grupos da manosfera. Ainda que os mesmos não sejam inocentes, seus casos devem servir de estudo no meio acadêmico e um alerta aos pais sobre conteúdos consumidos pelas crianças na internet.
A agressão (nestes casos) não provém da falta de empatia, mas sim da atração. Jamie afirma sentir atração por mulheres, mas seu comportamento agressivo tirou a vida de uma mulher. Ao perceber que não podem dominar ou agir da forma que quiserem com quem bem entendem (especialmente uma mulher) a agressividade se faz presente. Para além de olhar com reprovação este tipo de atitude, é válido relembrar a vulnerabilidade dos jovens. Não apenas de nossos dois personagens, mas de qualquer um que esteja à frente de um computador ou no celular, rolando a timeline de uma rede social. Pensar que seu filho ou filha já esteja nesses grupos assusta, mas é uma realidade que precisa ser encarada.